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Encantações baniwa contra a pandemia

  • João Vianna
  • 20 de jun. de 2022
  • 5 min de leitura

Atualizado: 21 de jun. de 2022


por João Vianna (Universidade Federal do Espírito Santo – UFES)

Afonso Fontes (Secretaria Municipal de Educação de São Gabriel da Cachoeira – AM)

Ilda da Silva Cardoso (Secretaria Municipal de Educação de São Gabriel da Cachoeira – AM)



“Eu comecei a sentir uma dor horrível, causando mal-estar e dor de cabeça. [...]. Passou uma semana, eu já estava bem fraco, com muitas dores. Dormi durante o dia, de dia mesmo. Em meu sonho, apareceu o senhor Dzooli, o dono de Benzimento, era uma voz me avisando que, se eu não tomasse cuidado, naquele dia eu iria morrer."


Este sonho é um dos pontos de partida do artigo “A doença do mundo”: xamanismo baniwa contra a pandemia [1], publicado na Mana neste ano de 2022, escrito por mim, João Vianna, antropólogo com etnografia entre os Baniwa, Afonso Fontes, dono do sonho, e Ilda Cardoso, sua esposa. É também o objeto central da nota de pesquisa “O novo coronavírus no sonho de um Hoohodene”[2] escrita por Afonso Fontes e publicada na Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à COVID-19 – PARI-c. Afonso ou Kamida, seu nome tradicional, do povo Baniwa, clã hoohodene, é um iñapakaita, ou seja, um especialista xamânico conhecido regionalmente como benzedor. Estes especialistas são detentores de diferentes encantações para as mais diversas doenças e infortúnios, suas fórmulas quando entoadas em cânticos produzem agenciamentos cósmicos que podem amenizar e controlar as doenças.


O relato onírico acima descreve um acontecimento crucial na busca de Afonso por um benzimento que não existia até então. Isso porque, a doença que o acomete e ele sonha era a Covid-19, desconhecida por ele e seus parentes até a sua eclosão pandêmica no início de 2020. O benzimento (ou encantação) integralmente transcrito e traduzido por Ilda Cardoso, mulher baniwa do clã Awadzoro, no artigo mencionado, oferece-nos uma chance de compreender como os Baniwa, povo de língua arawak que vive no Noroeste Amazônico, reconhecem uma multiplicidade de perspectivas que compõem o cosmos. Mais que isso, revela-nos que tudo aquilo que nós vemos ordinariamente, todas as nossas experiências comuns e, enfim, toda nossa existência é, do ponto de vista dos xamãs Baniwa, anteparada por dimensões ou “mundos” não evidentes, invisíveis, para os quais os xamãs estão especialmente atentos. Desta perspectiva, a doença da Covid-19 não é explicada por somente um vírus, tampouco se restringe às relações interespecíficas entre o homem e o morcego, mas um desarranjo cósmico bastante complexo que envolve sociedades industriais, extrativismo predatório, animais e demiurgos, na relação entre o mundo atual e o mundo mítico.

[1] https://www.scielo.br/j/mana/a/VxpxtK5S6f7VTj5psx6qdCs/#:~:text=Este%20artigo%20procura%20explorar%20a,o%20mundo%3A%20a%20Covid%2D19 [2] http://www.pari-c.org/artigo/81


Voltemos ao sonho. Afonso relata que o senhor Dzooli, o dono dos benzimentos, um dos demiurgos do panteão baniwa, avisa diretamente a ele que tomasse cuidado, pois, infectado, ele estava próximo de morrer. Em seguida, Dzooli pede que ele olhasse para a direita e esquerda, quando então duas bolas com espinhos (como nas famosas imagens do vírus divulgadas na mídia) se aproximaram dele e, então, ele acordou.


“Ao despertar neste mundo, eu ainda estava me queixando, muito fraco, com dor apertando o peito, falta de ar forte e com o meu coração se agitando fortemente. Eu não tinha mais força, voltei a dormir, e o senhor Dzooli apareceu novamente no meu sonho, dizendo:

– Corte estas dores com o Dzooli imaipere.

Isto é, ele disse para cortar as dores com o terçado (facão) de Dzooli, indicando, no meu sonho, uma sacola pendurada na parede. Parecia uma sacola pendurada com o terçado dentro, mas, na verdade, Dzooli queria falar do benzimento de cura.”


Afonso, contando-nos um sonho, descreve o modo como ele encontrou o benzimento contra covid-19. Em uma comunicação direta com o demiurgo ele recebe as instruções de como encontrar as palavras certas para as fórmulas de sua encantação. Dzooli ensinou Afonso a estar atento àquilo que ele deveria mobilizar, as forças e entes que deveria interpelar, convocar e ativar, contra as quais deveria se postar para amenizar as dores e as febres do corpo, bem como os tremores do coração-alma de si próprio e dos seus futuros pacientes.


– Lembre-se da história que foi falada. Lembre-se do Kowai, teste o seu conhecimento. Agora é a sua vez de se curar. Lembre-se do Kowai, lembre-se do Kowai, lembre-se do Kowai.


Com essas palavras Dzooli encerra sua comunicação no sonho. A partir dessas orientações, Afonso encontrou as fórmulas adequadas para o benzimento contra a covid-19, como nos deixa saber:


“Ao despertar para este mundo, comecei a meditar sobre o sonho, sobre o que eu ouvi. Eu estava fazendo um quebra-cabeça, em busca das ‘palavras-chave’ e das ‘palavras geradoras’ [do benzimento].”

Ele descobriu assim que Kowai era uma peça-chave para a compreensão do desarranjo responsável por trazer essa doença ao mundo. Kowai é um demiurgo estranho, ele possui a aparência de um homem branco, é o dono dos conhecimentos rituais, de poderes reprodutivos e xamânicos, mas também dos venenos, o pináculo da feitiçaria agressiva entre os Baniwa. O corpo de Kowai é todas as coisas do mundo, a terra, os vegetais, os animais e os minerais, com exceção do fogo. Em suma, Kowai é uma potência perigosa, que deve ser manejada com muito cuidado. Afonso desconfia que os brancos não estejam em suas atividades produtivas cuidando bem da terra, dos vegetais, dos animais e dos minerais: o corpo de Kowai. Por este motivo, durante o benzimento, por meio das fórmulas, o iñapakaita que for utilizar esse benzimento deve perguntar:


Será que é você? Você, o Kowai Manhekanali,

que infectou o corpo desta criatura [a pessoa doente]?

Com parte do seu corpo: com sua saliva, você Kowai

[...]

Pois consideraste que são as suas iras, como bicheiras, você Manhekanali.[1]

Os seus piolhos, você Manhekanali,

[...]

que deixam a garganta perturbada, com tosse constante, desta criatura.

Será que é a saliva dos bichos [de Kowai] que deixa irritada a garganta desta criatura?

São contra estes que vou sentar, cortar e quebrar com o terçado de Dzooli


Assim, com o “terçado de Dzooli”, o benzedor extrai do corpo doente que está sendo benzido os agentes patogênicos, cuja origem é Kowai. Esses patógenos são uma espécie de coagulação das “bicheiras” de Kowai que estão lançados na atmosfera pela atividade industrial e extrativista, pela fumaça dos motores e pelo chafurdar das máquinas na terra. Em seguida a “limpeza”, o iñapakaita deve “esfriar” e “adocicar” as dores:


Para que a alma-coração não se assuste, eu vou acalmar

a alma-coração que se agita. Vou aliviá-la.

Vou deixar o corpo aliviado e sem dores.


Com este, o néctar das abelhas:

as vermelhinhas, as cinzas,

as pretas.

Que ficam no terreno de Dzooli.



Compartilhamos, assim, algumas das fórmulas do benzimento contra a covid-19. Este é um benzimento que, novo, como a doença, precisou ser experimentado, para saber se realmente seria capaz de acalmar os agravos que a doença provoca. Afonso tem testado largamente o seu benzimento e tem repassado as fórmulas aos seus irmãos e parentes para que protejam suas famílias. Agora, ele divide sua encantação com mais gente, porque sabe que ela é um bálsamo frio para corpos febris. Trata-se de um cuidado para que os doentes se recuperem e estejam preparados para os outros infortúnios certamente vindouros no regime político e climático atual. Ele não defende que seu benzimento seja a cura do mundo, pois sabe que sozinhos, ele e os outros xamãs, não poderão desanuviar as fumaças tóxicas do céu, empesteada pelo corpo de Kowai. É por isso que escreve aqui suas palavras, ensina-as aos não indígenas. O benzimento aqui parcialmente transcrito, traduzido e analisado não é para que os não indígenas o reproduzam – aliás, mesmo possuindo-o, não poderiam –, mas para que o traduzam em seus próprios termos. Assim, se bem escutarmos os iñapakaita baniwa, poderemos aprender com estes especialistas a xamanizar o mundo, o que não significa acessar uma experiência religiosa, mística, transcendente, mas, ao contrário, inventar novas relações com a terra, percebê-la em sua imanência. É sobretudo um alerta que Afonso oferece a todos aqueles que preferem não ver as “coisas” vivas do mundo.



[1] Um dos modos dos iñapakaita designarem Kowai nos benzimentos.

 
 
 

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